Nunca foi tão fácil estar em
Nova York, mais especificamente no
Village Vanguard.
Estar e
entrar, aliás, na própria
vanguarda do
samba e - porque não - também do
jazz.
Bastou ir à Lagoa na quinta-feira passada e pronto: a viagem estava completa. E que viagem !

A premissa de homenagear a geração que forjou o samba-jazz no Beco das Garrafas foi só o ponto de partida para o devastador concerto que o
trio do pianista David Feldman (Jorge Helder, contra-baixo; Rafael Barata, bateria) ofereceu ao afortunado "turista" que, dirigindo-se ao
Mistura Fina, nunca imaginou aterrissar "virtualmente" no mais sagrado templo jazzísitico nova-yorquino, quiçá de todo o mundo.
Foi assim que me senti,
sentado ao lado "
apenas" da
História viva do jazz no Brasil:
José Domingos Raffaelli, Luiz Carlos "Lula" Antunes, Luiz Orlando Carneiro e Arlindo Coutinho, reunidos pela primeira vez, em décadas, e como que formando uma "banca examinadora" que normalmente faria tremer qualquer músico, ainda mais o jovem
Feldman, praticamente debutando, como líder, em terra natal.
Mas esse não era o espírito de nossos "
Feather", "
Hentoff", "
Gitler" e "
Schuller". Afinal fomos todos para uma noite de festa, de premiação, de samba-jazz.
O "problema" é que a música sublime, todo o tempo paradoxalmente intuitiva e cerebral, que o gênio de
Feldman engendrou, acabou arrebatando a cada um dos presentes, provocando e evocando as emoções mais diversas e puras que cada um tinha a compartilhar.
Nem o próprio
CJUB tinha a noção do autêntico
tsunami que elegeu (mérito maior para
Mauro Nahoum e Marcelo Carvalho) para abrir a temporada de 2005.
Sua técnica límpida, que censura até pequenos "esbarrões" (como a de um
Michelangeli, ou, modernamente,
Pogorelich e
Sokolov, todos pianistas clássicos), desafia o fato de nunca haver frequentado conservatórios.
-
Nunca estudei ou toquei música clássica. Sou um pianista de jazz, sempre fui; o que não significa não tenha aprendido os "rudimentos" do piano -
David insiste.
Mas as notas pinçadas em paciente
stacatto serialista, e que levaram à exposição de
Você e Eu (
C. Lyra) sugeriram já que aquele "
menino abusado" realmente não estava ali para brincadeiras.
Fiel aos preceitos do "talmud torah" monkiano, o estilo do pianista alinha com alguns dos mais talentosos discípulos do "alto sacerdote do bebop", em especial os da geração projetada nos anos 80/90, como
Uri Caine,
David Kikoski,
Jean-Michel Pilc,
Danilo Perez e
Stephen Scott, entre outros.
Como eles,
Feldman não veio para ser mais um. Nasceu para fazer História.
Por isso, acertou não só no
conceito do espetáculo (pois o jazz-bossa foi, sem dúvida, o que de mais sofisticado a música brasileira produziu até hoje) mas também na escolha do precioso
repertório - quase todos, temas conhecidos - a que deu tratamento sempre original e personalíssimo, como, p.e., na jóia de
Baden,
Só Por Amor, de harmonias tornadas parelhas as do clássico
I Fall in Love Too Easily (
Cahn-Styne), semelhança que
Feldman fez questão de ressaltar em sucessivos
choruses de extrema beleza.
Sambou ... Sambou (
Donato) perfilou os
fast fingers do líder ao gênio de
Rafael Barata, aqui explicitamente rendendo tributo a
Edison Machado, em brilhante arranjo de variada dinâmica.
O
largo em que se transformou
Lígia (
Jobim), com narrativa espraiada e contemplativa de início, revelou, após, um dos trunfos do
trio, qual seja a constante superposição de climas e clímaxes, ladeira acima e abaixo em sentimentos, recurso muito utilizado exatamente pelas grandes seções rítmicas que fizeram história no beco, como o
Zimbo e o
Tamba. Permeando a melodia, constantes citações de
I Remember Clifford (
B. Golson) e no
fade out, gotas de uma
Garota de Ipanema (
Jobim) expressionista, voltando para o mar.
Surgiu então, o maior desafio da noite, para o conjunto: domesticar a geométrica
Evidence (
Monk) para o samba.
Feldman ignorou as dificuldades inerentes a - no mínimo
sui generis - transição e, discorrido o tema, logo atacou um solo furioso, no que, aí sim, coube a
Barata e
Helder, com maestria, manter o trilho do heróico - e bem sucedido - arranjo, até o final.
Ousaram mais uma vez ao por de lado o
ostinato característico da "levada" de Estate (tornada um clássico por
João Gilberto no LP
Amoroso e sacralizada por
Shirley Horn e
Johnny Mandel no álbum
Here's to Life), preferindo remoer as entranhas da comovente melodia, toda apoiada em modulações.
Jorge Helder, empunhando extraordinário instrumento, dele tirou as profundezas da alma em inspirado improviso, tendo ao fundo, entretanto, um piano de
intenção sempre bossa, abandonada só no fim, para uma inesperada visita a
Debussy.
Fechando o
set, uma justíssima homenagem a
Milton Banana, com a derivação
bossada de
Now´s the Time (
Parker):
São Salvador, de
Durval Ferreira, ainda mais febril que no andamento original, traduziu todo o virtuosismo do trio,
Feldman diabólico em oitavas super rápidas e escalas descendentes
a la M. Tyner, culminando com uma
bridge antológica, inventiva como há muito não se via (
miniclip aqui).
No intervalo, confesso, não conseguia parar de sorrir. O prodígio, descansando no camarim, nem de longe suspeitava que, pelo menos eu, por sua causa, resgatara o orgulho de ser brasileiro.
(continua)