MÚSICA SEM PAUTA
Muito se tem falado de músicos
extraordinários que nem mesmo sabem ler partituras, talentos natos que só
sobrevivem na música popular, notadamente na de Jazz. Em nosso folclore existem
contadores de estórias e poetas repentistas que não sabem ler e eles próprios
perguntam : ― “e para quê?”
Suas imagens são espontâneas,
improvisadas no contexto de suas estruturas. Assim se passa com a música de
Jazz oriunda do folclore negro, ainda inculto, mas espontâneo e criativo.
Duvidamos que um Buddy Bolden
precisasse ler música, e para quê ?
BUNK JOHNSON, cornetista que
integrou a banda de Bolden entre os anos de 1895 e 1899, afirmou em seu
depoimento registrado em 1945, para a biblioteca do Congresso Americano dentre
outras coisas o seguinte: ― “Buddy não
lia uma só nota, mas tocava realmente muito bem. Juntos fizemos muitos Blues famosos e antes de
Buddy ter enlouquecido e ser internado, nós matamos todas as grandes bandas de
Nova Orleans. O que fez com que nossa King Bolden Band fosse a 1ª a
tocar Jazz foi o fato de ninguém alí saber ler nenhuma nota de música,
criavamos tudo na expontaneidade. Posso garantir a todos que fomos os primeiros
a tocar Jazz na cidade ou em qualquer outra parte do mundo”.
Os pioneiros de New Orleans não
sabiam ler partituras e esta intelectualização começou a ser difundida com os
creoles possuidores de melhores condições sócio-culturais.
Torna-se claro e óbvio que o
rendimento técnico da maioria dos músicos que sabe ler partituras é melhor,
até porque o Jazz tradicional de improvisação coletiva foi cedendo lugar a
conjuntos maiores com “ensembles” (*) arranjadas, chegando até as “big bands”
interpretando enorme repertório, inviável se seus músicos não soubessem ler as
notações em pauta.
Benny Goodman exigia boa leitura
de seus músicos, ensaiava bastante qualquer nova peça, já Count Basie agia de modo diferente. Earl Warren saxofonista alto da banda conta
que no fim dos anos 30 ainda eram poucos os arranjos inteiramente escritos e a
orquestra ensaiava tal qual numa “jam-session” bem descontraída. Desta forma, combinavam as “ensembles”, os
“riffs”, a entrada dos solistas e a quantidade de “choruses” de cada um, tudo
sob a supervisão de Basie.
Isto é o que se chamou de “Head Arrangement” (literalmente “Arranjo de Cabeça”) e assim foram gravados alguns dos grandes
sucessos da orquestra: - “Jumpim At The
Woodside”, “Every Tub”, “Blues In The Dark”, “Doggin’Around”, dentre
outros.
Billie Holiday era da maior
simplicidade e espontaneidade, não sabia
ler música, mas bastava o pianista passar a melodia e pronto, Billie pegava o
tom, o “feeling” da canção. Assim
ocorreu quando da gravação de “Night
and Day” em 1939, canção que jamais tinha ouvido e o pianista Joe Sullivan
que a acompanhava dedilhou no estúdio e pouco depois foi gravada essa obra
prima.
Outra figura de grande
espontaneidade foi Bix Beiderbecke, cornetista branco, dotado de “feeling” negróide e que também não lia quase
nada de música. Tornou-se famosa a estória de que atuando na orquestra
sofisticada e "sinfônica" de Paul Whiteman, costumava colocar um
jornal na estante fingindo ler uma partitura. Quando dos ensaios enrolava um pouco no início dos “ensembles”, mas depois
de 02 ou 03 passagens já tinha tudo de cor. No entanto, na hora de solar levantava-se e
então, ficava à vontade. Whiteman sabia de tudo, mas estava mais interessado
justamente nas exuberantes passagens que Bix proporcionava.
Um fato muito interessante
ocorrido com Louis Armstrong logo ao entrar para a banda de Fletcher Henderson,
(contado por Don Redman) é que Armstrong no primeiro ensaio olhava perplexo
para a partitura de trompete que Henderson distribuíra.
A orquestração indicava passagens desde o fortíssimo cuja notação era "ff", indo até o pianíssimo indicado por "pp" e Armstrong, que já não era muito versado em leitura de música, jamais tinha visto aquilo em partituras. Estava preocupado, mas firme. Por algum motivo, percebeu que os "ff" significariam uma passagem em fortíssimo e se tranquilizou. A banda começa a tocar e ao surgirem os “efes” vai “subindo” num crescendo e Louis acompanhando firme e quando na notação surge o "pp" a banda vai “caindo” para o pianíssimo e Armstrong continua “subindo”, tocando cada vez mais alto, até que Henderson pára tudo e diz:
― ” Louis, você não está seguindo o arranjo!”.
Louis: ― ”Claro que sim, estou
lendo tudo nesta folha”.
Henderson: - “E o que me diz
destes "pp" ?
Louis mais que depressa, porém já
meio desajeitado ― ”Suponho que seja power-plenty" (força-total) – “Não
Louis é pianíssimo!” O pessoal caiu na gargalhada, inclusive Henderson e o
próprio Armstrong.
Muitos episódios existem
envolvendo músicos sem saber ou com dificuldade em ler partituras. Errol Garner
criou um estilo único e genial de tocar piano e é quase certo que se soubesse
ler música jamais tivesse ocorrido dessa forma.
(*) - Ensemble - diz-se da parte
da execução em que todos os instrumentos tocam juntos não especificamente em
uníssono, mas ao mesmo tempo.
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