Mauro Nahoum (Mau Nah), José Sá Filho (Sazz), Arlindo Coutinho (Mestre Goltinho); David Benechis (Mestre Bené-X), José Domingos Raffaelli (Mestre Raf) *in memoriam*, Marcelo Carvalho (Marcelón), Marcelo Siqueira (Marcelink), Luciana Pegorer (PegLu), Mario Vieira (Manim), Luiz Carlos Antunes (Mestre Llulla) *in memoriam*, Ivan Monteiro (Mestre I-Vans), Mario Jorge Jacques (Mestre MaJor), Gustavo Cunha (Guzz), José Flavio Garcia (JoFla), Alberto Kessel (BKessel), Gilberto Brasil (BraGil), Reinaldo Figueiredo (Raynaldo), Claudia Fialho (LaClaudia), Pedro Wahmann (PWham), Nelson Reis (Nels), Pedro Cardoso (o Apóstolo), Carlos Augusto Tibau (Tibau), Flavio Raffaelli (Flavim), Luiz Fernando Senna (Senna) *in memoriam*, Cris Senna (Cris), Jorge Noronha (JN), Sérgio Tavares de Castro (Blue Serge) e Geraldo Guimarães (Gerry).

SAMBAJAZZ TRIO COMENTADO POR JOSÉ DOMINGOS RAFFAELLI

21 março 2006

Dentre os lançamentos de CD neste ano de 2006, já tivemos o prazer de citar o do SAMBAJAZZ TRIO, pilotado pelo pianista Kiko Continentino, pelo baixista Luiz Alves e pelo baterista e trompetista Cláuton ("Neguinho") Salles.

Aproveitando o lançamento do CD nesta quinta feira (23.03.2006) no Mistura Fina, tomamos a liberdade de reproduzir os comentários do Mestre Raffaelli, cuja riqueza de detalhes na análise do álbum, somente nos incentiva a aprender cada vez mais sobre música.

SAMBAJAZZ TRIO - “Agora Sim!”.

Por José Domingos Raffaelli


A música popular brasileira ganhou prestígio internacional no início dos anos 60, quando a bossa nova foi adotada pelos músicos de jazz americanos e tornou-se um fenômeno mundial. Esse sucesso surpreendeu até os brasileiros mais otimistas. Durante os anos dourados da bossa nova proliferaram os pequenos conjuntos instrumentais, em sua maioria trios, que atuavam nos quatro clubes do lendário Beco das Garrafas. A bossa nova estimulou o aparecimento de várias gerações de músicos, cuja grande maioria foi influenciada pelo jazz, adotando a improvisação jazzística sobre o então novo ritmo brasileiro, desenvolvendo uma amálgama apropriadamente denominada samba-jazz. A Guanabara Records mantém viva a influência dos grupos daquela época lançando o SAMBAJAZZ TRIO.

Pianista, compositor e arranjador, Kiko Continentino é um jovem revelado recentemente que reafirma seu vasto talento neste CD do SAMBAJAZZ TRIO (“Agora Sim!”), ao lado de Luiz Alves (baixo) e Clauton “Neguinho” Sales (bateria e trompete).

Nascido bem depois do boom da bossa nova e do samba-jazz, Kiko absorveu e filtrou aquelas influências, alcançando o ponto de equilíbrio adequado da linguagem brasileira temperada com a improvisação jazzística. Apesar da idade, possui sólidos conhecimentos musicais adquiridos ao longo de sua experiência atuando em inúmeros contextos. É lícito afirmar que, antes mesmo de nascer, Kiko estava predestinado a ser pianista porque faz parte de uma família de músicos. Seu pai, Mauro Continentino, foi o responsável por sua introdução no universo artístico. E não deu outra. Kiko desde cedo se dedicou ao piano com afinco. Seguiram seus passos os irmãos Jorge, nos saxofones, e Alberto, no baixo.
Com apenas 15 anos, Kiko era atração na casa noturna Pianíssimo Studio Bar que seus pais administravam em Belo Horizonte, chamando a atenção para o seu talento. Seus progressos foram tão acentuados que, vindo para o Rio de Janeiro, logo foi requisitado por alguns dos maiores nomes da MPB, tocando e/ou gravando entre muitos outros com Milton Nascimento, Quarteto Jobim-Morelenbaum, Gilberto Gil, Djavan, Edu Lobo, João Bosco, Emílio Santiago, Ivete Sangalo, Alaíde Costa, Victor Biglione, Nivaldo Ornelas, Pascoal Meirelles, Mauro Senise, Bebeto Castilho, Juarez Araújo, Idriss Boudrioua, Raul Mascarenhas, além de colaborações para o canal de TV Multi-Show e outros de uma lista quase infindável.
Paralelamente, ele organizou o ContinenTrio com seus irmãos Jorge e Alberto, gravando um CD com o nome do conjunto. Bastante solicitado como arranjador, colaborou com Milton, Djavan, Gilberto Gil, Bernardo Lobo, Beth Bruno, Zé Ricardo, Cláudio Zoli, Jane Duboc, Arthur Maia e o conjunto vocal Be Happy, entre outros.

Dedicado, consciente e estudioso, Kiko absorveu inúmeras influências, principalmente de jazz, samba, MPB moderna e tradicional, vigas-mestras da formação do seu estilo. Este CD reafirma suas qualidades reconhecidas pelos que acompanham o desenvolvimento da nossa música instrumental. Consistência é uma das palavras-chave que marca seu estilo. Além disso, ele unifica os requisitos ideais de todo bom músico - criatividade, virtuosismo e bom gosto -, uma combinação mágica que todos perseguem e poucos conseguem. Suas improvisações destacam-se pelas frases que forjam idéias sempre renovadas. Sua técnica altamente desenvolvida permite-lhe executar as frases mais intrincadas que imagina, sem jamais se preocupar com o exibicionismo, descartando o óbvio, o supérfluo e a mesmice. A integridade e a dedicação que dispensa à sua arte expressa um talento que sua criatividade desenvolve continuamente.

Luiz Alves é um dos nossos baixistas mais respeitados, com um currículo impressionante, tendo atuado com uma infinidade de artistas brasileiros e estrangeiros. Lenda viva do seu instrumento, por sua categoria e influência era considerado pelo genial Luiz Eça como "o baixista dos baixistas". Com longa estrada percorrida, Luiz tem passagens pontilhadas de brilhantes atuações, gravações e colaborações com uma constelação de astros, entre eles Tom Jobim, Luiz Eça, Johnny Alf, o seminal grupo Som Imaginário, Wagner Tiso, Robertinho Silva, Dori Caymmi, Paulo Moura, Maysa Matarazzo, Carlos Lyra, Hermeto Pascoal, Leny Andrade, Gal Costa, Hélio Delmiro, Sivuca, Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Edu Lobo, João Donato, Egberto Gismonti, Mauricio Eihorn, Moacyr Santos, Nana Caymmi, Cal Tjader, George Duke e outros. Domínio instrumental, tempo impecável, técnica justa, afinação irrepreensível, bela sonoridade (que os músicos chamam de "redonda"), bom gosto na escolha das notas e senso inato de antecipar idéias aos seus companheiros são marcas registradas da sua concepção. Entre seus atributos, também utiliza o arco do instrumento, uma raridade entre os baixistas, documentado no velho cavalo-de-batalha do jazz "Sweet Georgia Brown", "Maracangalha", "Quero-Quero", "O Trenzinho Caipira" e "O Morro Não Tem Vez”.

Conhecido pelo apelido de Neguinho, o baterista e trompetista pernambucano Clauton Sales é considerado por Kiko "um fenômeno por tocar bateria e trompete simultaneamente, com total coordenação e independência de mãos e pés, sempre com a mesma intensidade e suingue, alcançando níveis surpreendentes de alto rendimento artístico-musical em ambos os instrumentos, sem exibicionismos gratuitos". Radicado no Rio de Janeiro, tocou nos conjuntos de Geraldo Azevedo, Jota Moraes, Gonzaguinha, Tim Maia, Zé Ramalho, Luizão Maia, Selma Reis, Luis Melodia, Leila Pinheiro, Nico Assumpção e Toca Delamare, entre outros. Em "Agora Sim" e "Deus Brasileiro" ele dá uma amostra do seu talento como trompetista.

O CD ”Agora sim!” oferece repertório de várias fontes e tendências, incluindo clássicos do samba-jazz, da época áurea da bossa nova, MPB pré-moderna e tradicional, ritmos latinos, composições de jazz e originais de Kiko e Luiz Alves. Com arranjos originais e criativos, os músicos desenvolvem uma fusão de todos esses estilos. Segundo Kiko, "a idéia é reconectar fios que ficaram desligados desde os anos 60, época em que se fazia no Brasil uma música impregnada de bom gosto e modernidade. Naturalmente, essas informações vão sendo transportadas para uma nova perspectiva, tornando o som atual". Cinco clássicos da lavra de cinco dos maiores compositores brasileiros, cada qual em sua respectiva área, são devidamente investigados: "Maracangalha", grande sucesso de Dorival Caymmi em 1956, em cujo final Kiko inseriu "Maracalaxo", de sua autoria, como música incidental; o balanço de execução, a troca de compassos entre Kiko e Neguinho e a citação de "Estamos Aí" ilustram o entusiasmo e a alegria de tocar do trio. "O Trenzinho Caipira", uma das peças mais populares do eterno Villa-Lobos, iniciado solenemente por Luiz com o arco, tem seu andamento acelerado progressivamente por Kiko dando a idéia de um trem em movimento, reservando uma gama de sucessivas surpresas para o ouvinte. No clássico "The Dolphin", de Luiz Eça, que recebeu versões dos jazzmen Bill Evans, Stan Getz e Victor Feldman, Kiko traça seu perfil melódico através de engenhosas variações, homenageando o pianista Bill Evans na transcrição de um solo que se tornou uma obra-prima. O movimentadíssimo "O Morro Não Tem Vez", de Tom Jobim, agraciado por Luiz com o arco, começa com uma introdução de soul jazz, transforma-se em samba rasgado, tem um trecho latino de Kiko, troca de quatro compassos entre piano e bateria, e um surpreendente final em andamento 5/4 com sugestivos efeitos de pizzicato de Luiz no baixo.

A introdução complexa de Kiko em "Canção do Sal", de Milton Nascimento, cuja estrutura melódico-harmônica encantou o saxofonista Stan Getz, conduz a uma investigação relax do pianista com breves suspensões rítmicas judiciosamente intercaladas em seu solo.

O velho cavalo-de-batalha "Sweet Georgia Brown", que há décadas serve de trampolim para improvisações de jazz, recebe tratamento singular com Luiz Alves em amplo destaque expondo o tema com o arco, enquanto Neguinho acompanha emulando os bateristas da década de 30. Depois vira samba-jazz à guisa de transição moderna de execução, terminando humoristicamente com o famoso "clichê nº 1.239-A", como a ele se referia o consagrado crítico Leonard Feather.

Além de “Maracalaxo”, Kiko colabora com três composições. "Sabor Antigo" (demonstrando ser um músico atualizado em concepção e approach), conta mais adiante com uníssono de piano e baixo sublinhando o solo de bateria. A exposição de "Noturno", tema com tintas latinas, dá lugar ao andamento 4/4 do jazz, adiante alternando com um ritmo que chamamos de latin-bossa, valorizando a interpretação com engenhosas e criativas variações rítmicas. "Cem Anos para Amar", em parceria com a cantora Simone Guimarães, é levado em andamento moderado bastante favorável ao suingue coletivo, um elemento sempre presente em todo o CD. Luiz Alves contribuiu com três obras: em "Agora Sim", a introdução de baixo com o trompete assurdinado de Neguinho cede lugar a Kiko expondo o tema; adiante, com o trompete aberto, Neguinho improvisa, seguido por Kiko com sua habitual consistência, além de interessante revezamento piano-trompete; "Quero-Quero", no qual Kiko esbanja criatividade através de idéias fluentes que se renovam, evoca um passeio pelo lendário Beco das Garrafas; "Praça Pio XI", em parceria com o pianista Luizão Paiva, é um exuberante e legítimo samba-jazz que enseja ao trio projetar sua coesão e unidade.

Kiko dá asas à sua extroversão em "Deus Brasileiro", dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, criando excitação e entusiasmo num andamento acelerado, cabendo a Neguinho intervenções no trompete.

Há pouco a acrescentar. A essência da música do SAMBAJAZZ TRIO está no diálogo e na interação entre os músicos. Eles possuem o conhecimento de melodia, harmonia e ritmo agregados a um instinto musical superior requerido para esta suprema e exigente forma de arte - a improvisação. Este é mais um cartão de visita de Kiko Continentino e da Guanabara Records, que restaura nossa fé na boa instrumental música brasileira.

José Domingos Raffaelli
Crítico de jazz e música brasileira
Agosto de 2005

Um comentário:

Unknown disse...

Que honra ter essa brilhante resenha do super JDR. Como José me contou, ele ouviu seguidas vezes o nosso álbum, terminando por escrever uma das mais completas críticas musicais que já tive o prazer de saborear. O Sambajazz Trio agradece.