Caderno B, JB, 2 de janeiro
por Luiz Orlando Carneiro
Improvisação coletiva que marcou a história do jazz
Há meio século – no dia 21/12/1960 – Ornette Coleman gravou para a Atlantic o álbum-manifesto Free jazz , que é tão marcante para a história do jazz como a Sagração da primavera ( Le sacre du printemps ), de Igor Stravinsky, para a chamada música erudita. Trata-se de uma improvisação coletiva de 37 minutos em que conspiram e interagem dois quartetos sem piano: o do revolucionário saxofonista alto, mais Don Cherry (trompete de bolso), Scott LaFaro (baixo) e Billy Higgins (bateria), e o formado por Eric Dolphy (clarinete baixo), Freddie Hubbard (trompete), Charlie Haden (baixo) e Ed Blackwell (bateria).
Na capa da edição original do LP, a reprodução de uma tela de Jackson Pollock (1912-56), White light , típica da action painting do grande abstracionista americano. No disco, a ac tion playing de Ornette e seus parceiros, assim resumida nas notas de contracapa de Martin Williams: “ Free jazz não é uma peça na base do tema e variação, no sentido usual. As partes escritas são breves introduções para cada solista, destinadas a apresentá-lo e a lhe dar combustível musical. Os solistas não fazem variações; a improvisação deles é a própria música – o tema é o que inventam na hora, no ato da criação”.
Na época, o álbum dividiu a crítica em dois blocos inconciliáveis. Ninguém podia prever que o criador daquele blend ex cêntrico da politonalidade com o shout dos blues , que exacerbava o discurso parkeriano, acabaria por merecer a distinção do Prêmio Pulitzer. Em 2007, a honraria que antigamente só era atribuída a luminares da “música erudita” americana do porte de Copland, Barber e Charles Ives, foi concedida – pe la primeira vez na história – ao autor de um disco. E o registro fonográfico premiado foi o CD Sound grammar , gravado ao vivo em 2005, na Alemanha, num concerto do atual quarteto do saxofonista-compositor, integrado pelo seu filho Denardo (bateria) e dois baixistas (um acústico, o outro elétrico).
O compositor Gunther Schuller – arauto da chamada Third stream music e Pulitzer de 1994, pela peça orquestral Of reminiscences and Reflections – escreveu: “Sem desmerecer a enorme influência de Coltrane, tudo que hoje ouvimos na vanguarda do jazz vem de Ornette. (…) Ele revelou a possibilidade de um novo estilo, de um novo território linguístico além dos extremos da linguagem tonal” ( Downbeat , janeiro de 2002).
Aos 80 anos, completados em março, Ornette Coleman continua a se apresentar em concertos com o quarteto de Sound grammar , recriando – sempre na base do aqui e agora – temas de sua autoria que se tornaram clássicos do jazz contemporâneo, como Turnaround , Lonely woman , The blessing ou Blues connotation . E composições mais recentes, entre as quais Sleep talking (do CD premiado com o Pulitzer), abertamente inspirada na melancólica melodia de abertura do Sacre du printemps de Stravinsky.
3 comentários:
Esse disco é um dos maiores engodos da história do jazz.
Conheço "Free Jazz" e gosto muito. Não, não é (um engodo). Impressiona-me por vezes a facilidade com que os aficcionados alçamos nossas desafeições musicais à categoria de verdade absoluta. Se não estamos habituados a um certo tipo de jazz, ao invés de nos dispormos com mente aberta a conhecer o "estranho" (afinal, jazz é antes de tudo "sound of surprise"), logo sentenciamos "isso não é jazz". Curiosamente, esse tipo de postura é comum tanto da parte daqueles que só entendem como "jazz" o "mainstream", preferindo sempre o porto seguro e confortável de uma interpretação certinha de standard a terrenos nunca dantes navegados por seus ouvidos, quanto da parte daqueles que só entendem como "jazz" aquilo que for novidadeiro, de preferência com cacofonia, e sentenciam como "reacionário" qualquer bela interpretação de standard ou música na tradição de Louis Armstrong. Ficam preplexos ao ouvir/ler Cecil Taylor dizer admirar o Modern Jazz Quartet, e John Lewis dizer que Ornette foi um dos músicos mais importantes de todo o jazz. A coisa "não fecha". Vamos abstrair o nome de Ornette. Freddie Hubbard, Scott LaFaro, Billy Higgins,Eric Dolphy, Don Cherry, Ed Blackwell, Charlie Haden ... Ninguém é obrigado a gostar de uma gravação reunindo tantos importantes músicos, mas lançar-lhe o epíteto de "engodo" me parece um exagero um tanto pretensioso.
"Pretendem os aficcionados entender de imediato um problema sobre o qual os artistas pensaram dias,meses e até mesmo anos?" (Robert Schumann)
Trata-se de álbum seminal do jazz, ápice indicutível do movimento free, mas sem jamais se desconectar do blues, é bom ressaltar. Todo o disco ("Fist Take" e "Free Jazz"), acreditem, é calcado no blues (tem de ouvir - essa coisa do "não ouvi e não gostei" é indigna dos inteligentes), quase sempre marcado em 4/4 por Haden, em um dos quartetos, enquanto, no outro, LaFaro barbariza como nunca antes - ou depois - fez. Espetacular sessão, marcada pela habitual coragem da Atlantic (leia-se irmãos Ertegun), disposta a lançar tamanha ousadia musical, ainda mais para a época. Obra-prima indisputável e álbum certeiro entre os 10 mais importantes de toda a história do jazz. Quase nenhuma das units fixas e de prestígio dos ú;timos 30 anos existiria, sem Ornette. Falo, p.e., do D. Holland Quintet, do atual Quarteto de Shorter, da Liberation de Haden/Bley, dos trios de Pilc/Hoenig, dos grupos de Dave Douglas e de Walt Weinskopf e do quarteto de Brandford, para citar só alguns.
Postar um comentário